O esfumar da memória

Incêndio em Vila Cã. Foto do autor.
Quero, em primeiro lugar, expressar a minha solidariedade para com todas as vítimas da vaga de incêndios que assolou o nosso país, causando tragédias e perdas incalculáveis. Começando, claro, pelas inúmeras vidas humanas, mas também por todos os que viram o esforço e o trabalho de uma vida reduzidos, literalmente, a cinzas. E esses, no meio de todo o corrupio social e político, são os primeiros a ser esquecidos.

Também aos nossos Bombeiros segue daqui um grande enaltecimento pela sua postura heroica e vontade em servir o país e os portugueses. É altura de se pensar em valorizar verdadeiramente estes homens e mulheres que, apesar de voluntários, são verdadeiros profissionais. Todos nós podemos fazê-lo, sendo sócios das associações de Bombeiros das nossas terras. Eu próprio estou em falha e cuidarei disso prontamente.

A memória humana é muito curiosa. Não valerá a pena entrar por aspectos técnicos e científicos, dos quais pouco ou nada entendo. Mas é importante referir que aquilo que num dia causa choque num ser humano é passível de ser esquecido em poucos dias.

Em relação ao esquecimento, esse foi o caso de Pedrógão Grande, das inúmeras vítimas que ao longo de quatro meses foram desprezadas, não tendo acesso às indemnizações que legitimamente mereciam. Não fosse o caso de haver nova tragédia e ainda hoje estariam à espera. Mas isso também se constata no debate social, mais do que no político, quando as preocupações dos cidadãos comuns se centram no desculpabilizar/atacar de certos agentes. Destes não haverá legitimidade para exigir dos nossos responsáveis políticos seja o que for.
Quero expressar sem qualquer rodeio: aquilo que aconteceu nestes 5 meses é inadmissível. Foi inadmissível o que sucedeu em Pedrógão Grande e, pior ainda, volvidos 4 meses, permitir-se que situações destas se repitam. O Estado falhou duplamente, cometendo os mesmos erros fatais duas vezes. E isso é injustificável.

Sabemos que as condições meteorológicas eram adversas, tanto mais que o IPMA não se inibiu de emitir alertas e avisar os responsáveis da Proteção Civil. Sabemos, também, que houve inúmeras ocorrências de fogo posto, que dificultaram muito mais o trabalho dos nossos bombeiros e operacionais. Em relação a este último ponto, parece-me óbvio que, como o Primeiro-Ministro afirmou, voltarão a verificar-se muitas mais. Especialmente, se não se fizer nada para o mudar.

Daqui lanço o primeiro desafio/proposta: se temos tantos fogos postos, como muitos afirmam, está na altura de agravar as molduras penais para este tipo de crimes. Da minha parte, equiparo estes crimes a terrorismo pelo seu potencial destruidor e pelas vítimas causadas e, por isso, sugiro molduras penais superiores a 20 anos. E, se existem mesmo redes elaboradas de incendiários, é altura de preparar e formar inspetores da Polícia Judiciária para as neutralizar. Incompreensível é utilizar-se o fogo posto como justificação para estes desastres e não se agir em conformidade.

Apesar das condições meteorológicas excecionais, isso também não pode servir de desculpa. Os alertas foram dados e a mobilização de meios - nos quais se inserem os aéreos - deveria ter ocorrido em larga escala, muito superior à que se verificou. De resto, considero que esses mesmos meios aéreos poderiam estar integrados na força aérea, parte integrante das nossas instituições militares que existem para proteger o nosso país.

Em todo o caso, é fundamental que Portugal esteja dotado de meios aéreos próprios para reduzir a sua dependência de ajuda externa. E, se esses meios puderem ser polivalentes - combate a incêndios, patrulha, transporte de emergência - tanto melhor. Uma distribuição eficiente entre as bases aéreas de Aguiar da Beira, Monte Real, Monfortinho e Mértola poderia assegurar uma boa cobertura do território nacional.

A própria delimitação de fases de prevenção deixa de fazer sentido. A mobilização de meios deve estar relacionada com alertas meteorológicos, sendo imperativo termos maior flexibilidade para que isto aconteça. As previsões meteorológicas, não estando isentas de falhas, oferecem um quadro aproximado do estado do tempo que se vai verificar e devem servir de base para a preparação dos meios. E isto acontece em caso de incêndios ou de outras intempéries, como tempestades ou cheias.

Tenho assistido também à culpabilização do eucalipto. Não creio que o eucalipto seja culpado. Os culpados são os donos de plantações de eucalipto que não cuidam das suas plantações e não fazem a sua limpeza. Não me choca que se permita aos donos das terras plantar eucaliptos, apenas deve ser garantido que o façam em moldes que não prejudiquem os demais, com faixas de proteção nas fronteiras dos terrenos, se tal for necessário. E é para isso que a GNR e os GIPS devem realizar as fiscalizações, que estão previstas na lei, entre março e abril, em conjunto com autoridades das autarquias locais e advertir os proprietários a cumprir as regras.

Mas também aqui é sabido que existem demasiadas burocracias para quem quer fazer a limpeza dos seus terrenos que devem ser simplificadas. Uma comunicação às autoridades locais deverá ser suficiente para que um proprietário proceda à sua limpeza, em vez de se ter de requerer autorizações especiais a institutos de conservação da natureza. Outra questão são os terrenos públicos e nesses o Estado poderá dar o exemplo, assegurando a sua limpeza e não plantando eucaliptos.

Daqui surge outro problema: o cadastro dos terrenos. Esse processo deve avançar rapidamente e de forma descentralizada, com forte presença de municípios e juntas de freguesia. É importante encetar contactos com populações locais e averiguar todos os proprietários e respetivas terras. Deve também ser estipulado um prazo máximo para serem reclamados os terrenos e, no caso de não serem, deverá ser o Estado a realizar a sua manutenção. Se os proprietários os vierem reclamar posteriormente, dever-lhes-ão ser apresentadas as faturas, capitalizadas ao momento da reclamação, relacionadas com o tratamento dos terrenos.

Estas sugestões valem o que valem. Aquilo que não pode acontecer é a desresponsabilização do que sucedeu. O Estado existe, antes de mais, para proteger os seus cidadãos e, caso não o consiga fazer, deve ser dado lugar a outros que melhor o façam. Entristece-me que se pegue em casos do passado como o da Legionella para atacar outros responsáveis políticos - o vulgo justificar erros com outros. Há uma grande diferença entre os dois casos. Enquanto que, nos incêndios, o comando da Proteção Civil foi todo renovado em abril por pessoas próximas do atual Primeiro-Ministro, o Diretor Geral de Saúde, Francisco George, a quem reconheço um bom trabalho, havia sido nomeado por outro governo e manteve-se em funções durante o caso da Legionella.

Não podemos brincar com a segurança dos cidadãos e, muito menos, dizer que têm de se auto-proteger, ao mesmo tempo que se procura desculpabilização de forma desenfreada, atirando areia para os olhos. Não é forma de governar e, muito menos, de respeitar aqueles que mais perderam com tudo o que se verificou. A procura de soluções e de resolução dos problemas é a melhor forma de respeitar todos os nossos compatriotas que sofreram com esta tragédia. Adicionalmente, não os podemos esquecer. Mas, infelizmente, a memória que temos deles é como o fumo. Vai-se dissipando lentamente até desaparecer por completo.


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